quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Longes

"Nosso canto será o mais bonito Mi Fá Sol Lápis de cor
Nossa pausa será o nosso grito que a natureza mostrou
A gente é tão pequeno, gigante no coração
Quando a noite traz sereno a gente dorme num só colchão

Menina vou te sonhar comigo
Menina vou te sonhar comigo"
O Teatro Mágico - Menina




O forasteiro pensou que a chamavam daquela forma por ser mais rápido no correr do dia, e se iluminou quando soube que era aquele o nome dela. Menina. Como se fosse a única.

Menina poderia lavar lençóis brancos nas margens cristalinas de um rio, poderia cantar estrelas com sua voz de arvoredo. Contudo trabalhava entre as letras, cada história daquelas páginas entravam como sonhos alados em sua forma de sorrir. Há muito o forasteiro desacostumara com sorrisos. Nunca pensou que encontraria um sorriso que despertasse o seu adormecido numa livraria colorida em uma rua morna de São Paulo.

Menina caminhava como o vento carregando um elegante chapéu azul pela calçada. Ele a perseguia com o olhar no final do dia, bordando-os em sonhos ao sol. Tinha medo de quebrá-la com seu olhar atrevido, como se a pequena na verdade fosse feita de delicada porcelana. Gostava de perceber que as magnólias e as tulipas se inclinavam nas floriculturas, com o intento de provar o balançar de seu vestido em suave suspiro. Nas bordas do coração sentia uma dor miúda quando pensava nos pés transparentes dela pisando os seus em verde grama. Quando pensava nos longos cabelos dela despenteados na sua cama. Um luar lilás e frio pela janela esquecida. Um arco-íris umedecendo o peito.

Cada vez os pés dela ficavam mais longe, longes que os seus não suportavam, se esticava, acelerava, na tentativa imprudente de não perdê-la, como água ela corria por seus dedos. Levava nas mãos uma cesta de morangos, da cor de seus lábios, morangos que perdia pelo caminho.

A tarde dava seu derradeiro sorriso naquele dia em São Paulo, os dedos úmidos do vento tocavam levemente as pessoas que transitavam pelo centro da cidade, os prédios já cobriam de sombra algumas das ruas, a fumaça das carrocinhas de cachorro-quente e os copinhos descartáveis de café que aqueciam davam lembranças de que a noite se aproximava, velhos e ambulantes conversavam alto, mendigos perambulavam sem serem notados, nas paradas de ônibus trabalhadores cansados, mãos cheias de sacolas de todas as lojas do comércio, mochilas e estudantes. Enquanto ele a perdia.

Caminhou mais rápido. Como um cavaleiro andante de plástico. Esticou os dedos o mais que pôde. No instante que a tocaria, viu suas asas abrirem e rasparem de leve seu coração. O cesto de morangos desmaiado no chão cinza da cidade. O forasteiro guardou a espada de plástico. Sentou-se na calçada. Sentiu as patas geladas da borboleta em seu coração. Mordeu o morango mais vermelho, e o gosto de fantasia na curva da língua quase o matou.


“A poesia é um dedo de criança contornando o coração
Manchando tudo de brando lilás.
As páginas inquietas de um livro
dedilhadas ao toque melancólico do vento: um mar.
Em cada verso, na pálpebra da alma, um beijo a navegar.”




Kamila Ail da Costa

2 comentários:

  1. Como um sonho, estas imagens colocadas por vocês em minha cabeça, ecoam, imagens que ecoam e me completam.

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  2. Adorei. Como todos os outros contos que já li.

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