domingo, 29 de março de 2009

Quando Goethe chorou.

"Querida, que tal baixar o televisor?
Deitado no divã com Woody Allen
Eu tive um sonho com aquele estranho, velho alien
Que era cabeça Bob Dylan, barba Ginsberg, Allen"
Jupiter Maçã - A Marchinha Psicótica Do Dr. Soup


Acordou, sentindo um cheiro e o brilho de erva-mate no cabelo, como se na noite anterior tivesse sonhado com ninfas em um bosque. No espelho do banheiro, mirava seu rosto amarrotado, como um mamão morto no asfalto.

No armário os remédios com os quais dava de comer a sua doença, faminta como o filhote de um pássaro.

Pensou por alguns instantes nos pássaros, desconfiava de seu canto, para ele uma dor feita de chumbo, que questionava suas asas, que lhes coagia no azul do céu. Ele também sentia o chumbo cristalizando suas asas.

Na cozinha percebeu pela primeira vez a presença inquietante do oco dos armários, e um pouco mais no fundo, melancólico, sabia que no mercado não encontraria sonhos enlatados, nem esperança congelada. Na pia da cozinha deixou o muco e as lágrimas encontrarem-se com o inox frio, como um feto no calor de sua mãe, do frio ao frio.

Nas chaves do carro, frias em sua mão, sentiu um líquido verde escorrer por debaixo da unha, quase sem se fazer notar.

No supermercado, as pessoas o olhavam por entre os corredores, e os olhos inquisidores faziam arder sua pele. Os olhos cada vez mais perto. E seus olhos sem conseguirem correr para longe, seus olhos atados nos outros olhos, cada vez mais perto. Urgentes.

Até que no lustro de uma prateleira, em meio à insistência, ele se viu.

Era um homem verde, de um verde musgo sincero, e suas raízes sangravam uma seiva, como o sêmen da lesma que faz brilhar o mundo. Não tinha o verde ingênuo de uma alface, mas sim o verde envelhecido e entediado do limo.

No momento que começava a sentir o sol ausente a latejar em suas folhas, percebeu que uma voz forte lacrimejava e gritava pelos corredores, cada vez mais perto, como outrora os alheios olhos. Goethe o abraçou erudito, as mãos que um dia embalaram Werther com sua tinta no papel, tremiam em seu pescoço. Goethe o olhava com a tristeza e a candura de um bebê cansado de chorar e com fome, e lhe confidenciou ao pé do ouvido, com a voz em um alemão embargado de lágrimas e suspiros: O capitalismo acabou.

Depois um gigante, que passava por ali em seu patinete, o avistou de fora da minúscula janela e o trouxe em suas redondas mãos até a boca. Com um fósforo, que riscou no meio fio, ele o acendeu e o fumou como um baseado suculento, e ele, sendo tragado em boca grande como o mar, sorriu ao sentir o orgasmo lírico de um vampiro.



Kamila Ail da Costa.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

De um ardente e carregado vermelho.

"I''ll send an S.O.S. to the world
I 'll send an S.O.S. to the world
I hope that someone gets my
I hope that someone gets my
Message in a bottle
Message in a bottle"
Police - Message In A Bottle

O capitão naquela manhã observava o delicado vôo das gaivotas da proa de seu navio. Com um toco de lápis fazia anotações em seu caderno de navegação. Era um velho homem do mar, dos que deixavam um amor em cada porto, e seduziam tantas mulheres quanto eram seduzidos a sempre voltar para o mar.

Contudo aquele marinheiro escondido atrás de seu charmoso cachimbo, de feições embrutecidas, barba por fazer, e olhar mais azul que o oceano, escondia um segredo. As costas largas e viris daquele marujo carregavam um peso maior do que ele poderia suportar. Uma dor funda, quase marítima, como uma eterna ressaca, que a tudo engolia e mastigava como as águas que ás vezes se mostravam grosseiras e injustas e afundavam antigos e cansados barcos. Quando a noite se acomodou no teto de seu navio, o pobre capitão sentiu-se arvoar, as estrelas eram como lágrimas cristalizadas na escuridão do céu. A lua em sua majestade o mirava com algo parecido com dó. Quem o dera pudesse voar em um cavalo branco para sempre pelo céu, como fizera a lua, que outrora fora uma triste e bela dama de plúmbeos cabelos, que enlouquecera de amor.

O homem olhava a lua e agora entendia que o mar para ele também significava uma espécie de fuga, não poderia permanecer em terra firme por muito tempo sem Ana, sem saber da espera dela que flutuava sobre as ondas, nas margens do mar. Ana não o esperava mais. Ana e sua cesta de flores, as flores e os lábios de Ana, escandalosos nos entardeceres, de um ardente e carregado vermelho, seu vestido azul turquesa balançando ao vento como um brando sino, os beijos de Ana, cuidadosos e com gosto de maresia. E suas mãos frias, lânguidas, pequenas e nuas dentro das dele, ásperas e quentes. O perfume de seus cabelos, como uma canção úmida e miúda iluminando o oco de seu peito. Ana, sua flor recém colhida, ainda orvalhada, frágil e comovida, dentro de seus braços.

Foi nisso que o marinheiro pensava enquanto escrevia as seguintes palavras em uma carta que dentro de uma garrafa jogaria ao mar: De um ardente e carregado vermelho. Eu vou guardar o meu amor por você debaixo da pedra mais colorida do meu coração, muitos caminharão pela areia branca e deixarão suas marcas, pegadas e cicatrizes, mas o teu amor permanecerá imaculado e intocável, com a claridade do céu depois da tempestade. Como um navio preso nas ondas do mar, como um pássaro prisioneiro do azul do céu, como a flor rubra e solitária, ausente dos cuidados de uma borboleta branca. Minha amada Ana você sempre terá minhas mãos para segurar nas noites frias, minhas mãos bordadas de consolo. E eu terei para sempre o veludo dos teus lábios, que me aquecerão. E não morreremos de frio meu amor, porque nada seria mais triste do que morrermos de frio, aquele frio azulado, como um canário empoleirando-se e encontrando abrigo em uma árvore verde-limo de abandono.

Na garrafa que morria ao mar o marinheiro afogava suas derradeiras palavras. Depois das palavras foi seu próprio corpo exausto, daquele velho amante sem porto, sem paz e sem lugar no mundo, que foi recebido pelas águas profundas e frígidas. Ele pulou para o azul com se voasse pelo céu em seu cavalo branco, no exato instante em que uma estrela se despregava do céu e caía como uma lágrima no distante horizonte.

Kamila Ail da Costa.

"Todo o vermelho para Adriana".

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Longes

"Nosso canto será o mais bonito Mi Fá Sol Lápis de cor
Nossa pausa será o nosso grito que a natureza mostrou
A gente é tão pequeno, gigante no coração
Quando a noite traz sereno a gente dorme num só colchão

Menina vou te sonhar comigo
Menina vou te sonhar comigo"
O Teatro Mágico - Menina




O forasteiro pensou que a chamavam daquela forma por ser mais rápido no correr do dia, e se iluminou quando soube que era aquele o nome dela. Menina. Como se fosse a única.

Menina poderia lavar lençóis brancos nas margens cristalinas de um rio, poderia cantar estrelas com sua voz de arvoredo. Contudo trabalhava entre as letras, cada história daquelas páginas entravam como sonhos alados em sua forma de sorrir. Há muito o forasteiro desacostumara com sorrisos. Nunca pensou que encontraria um sorriso que despertasse o seu adormecido numa livraria colorida em uma rua morna de São Paulo.

Menina caminhava como o vento carregando um elegante chapéu azul pela calçada. Ele a perseguia com o olhar no final do dia, bordando-os em sonhos ao sol. Tinha medo de quebrá-la com seu olhar atrevido, como se a pequena na verdade fosse feita de delicada porcelana. Gostava de perceber que as magnólias e as tulipas se inclinavam nas floriculturas, com o intento de provar o balançar de seu vestido em suave suspiro. Nas bordas do coração sentia uma dor miúda quando pensava nos pés transparentes dela pisando os seus em verde grama. Quando pensava nos longos cabelos dela despenteados na sua cama. Um luar lilás e frio pela janela esquecida. Um arco-íris umedecendo o peito.

Cada vez os pés dela ficavam mais longe, longes que os seus não suportavam, se esticava, acelerava, na tentativa imprudente de não perdê-la, como água ela corria por seus dedos. Levava nas mãos uma cesta de morangos, da cor de seus lábios, morangos que perdia pelo caminho.

A tarde dava seu derradeiro sorriso naquele dia em São Paulo, os dedos úmidos do vento tocavam levemente as pessoas que transitavam pelo centro da cidade, os prédios já cobriam de sombra algumas das ruas, a fumaça das carrocinhas de cachorro-quente e os copinhos descartáveis de café que aqueciam davam lembranças de que a noite se aproximava, velhos e ambulantes conversavam alto, mendigos perambulavam sem serem notados, nas paradas de ônibus trabalhadores cansados, mãos cheias de sacolas de todas as lojas do comércio, mochilas e estudantes. Enquanto ele a perdia.

Caminhou mais rápido. Como um cavaleiro andante de plástico. Esticou os dedos o mais que pôde. No instante que a tocaria, viu suas asas abrirem e rasparem de leve seu coração. O cesto de morangos desmaiado no chão cinza da cidade. O forasteiro guardou a espada de plástico. Sentou-se na calçada. Sentiu as patas geladas da borboleta em seu coração. Mordeu o morango mais vermelho, e o gosto de fantasia na curva da língua quase o matou.


“A poesia é um dedo de criança contornando o coração
Manchando tudo de brando lilás.
As páginas inquietas de um livro
dedilhadas ao toque melancólico do vento: um mar.
Em cada verso, na pálpebra da alma, um beijo a navegar.”




Kamila Ail da Costa

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

.O Começo.

"Sonho parece verdade
Quando a gente esquece de acordar
E o dia parece metade
Quando a gente acorda e esquece de levantar
Ah e o mundo é perfeito
Mas o mundo é perfeito
O mundo é perfeito..."
O Teatro Mágico - Sonho de uma Flauta


A ideia é publicar contos baseados em meus sonhos um tanto quanto, sem nexo; bizarros diria eu...

E vou tentar achar explicação para alguns elementos do sonho, se possível.

O que foi sonho, e o que foi criação, estará devidamente misturado no conto. Divirtam-se.



Apresentando os .sonhadores.:

Rafael A. Machado
Kamila Ail Costa